Sorofobia
A sorofobia é o preconceito, o estigma, a discriminação e o medo irracional direcionados a pessoas que vivem com HIV (Vírus da Imunodeficiência Humana) ou AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida). Trata-se de um fenômeno social que transforma uma condição viral crônica em uma marca de "falha moral" ou perigo iminente.
Definição
O termo une "soro" (referente à sorologia positiva) e "fobia" (aversão). Diferente do medo do contágio baseado em ciência, a sorofobia é fundamentada na ignorância e no julgamento moral sobre a sexualidade. Ela opera através da distinção perversa entre a "vítima inocente" (quem contraiu por transfusão ou traição) e o "culpado" (gays, usuários de drogas ou pessoas com vida sexual ativa), punindo socialmente o portador do vírus independentemente de seu estado de saúde. No Brasil, o ativista Herbert Daniel cunhou o termo "Morte Civil" para definir o efeito final da sorofobia: a pessoa continua viva biologicamente, mas é "morta" socialmente, perdendo o direito ao afeto, ao trabalho e à cidadania plena devido ao estigma.
Como funciona
A sorofobia funciona através da perpetuação de uma "imagem congelada" dos anos 80 e 90, ignorando deliberadamente os avanços científicos das últimas décadas. A sociedade ainda enxerga a pessoa com HIV como um "corpo doente" ou "contagioso", recusando-se a aceitar o consenso científico global do I=I (Indetectável = Intransmissível). Ou seja, a sorofobia faz com que pessoas recusem relacionamentos com indivíduos soropositivos em tratamento (que não transmitem o vírus), preferindo parceiros com sorologia desconhecida, sob a falsa sensação de segurança baseada na aparência. Esse preconceito opera também através da linguagem e da segregação afetiva, criando uma dicotomia entre "limpo" e "sujo". Em aplicativos de relacionamento e conversas cotidianas, é comum o uso da expressão "sou limpo" para indicar "não tenho HIV". Isso implica, automaticamente, que a pessoa vivendo com HIV é "suja" ou "contaminada". Esse mecanismo força o sujeito soropositivo a viver no armário (segredo) ou a sofrer rejeição imediata ao revelar sua condição, transformando a transparência ética em motivo de punição. Além disso, o funcionamento da sorofobia é institucional e biopolítico. Ela se manifesta quando empresas realizam testes ilegais de HIV em exames admissionais para descartar candidatos, ou quando o sigilo médico é quebrado em hospitais e famílias, expondo a pessoa a um julgamento público. A sorofobia utiliza a culpa como ferramenta de controle, sugerindo que o diagnóstico é um castigo por um comportamento sexual desviante, retirando da sociedade a responsabilidade pela prevenção e depositando-a inteiramente no indivíduo infectado.
Exemplos
- Discriminação em aplicativos: perfis que exigem "UB2" (Uncut, Black, Top - gírias gays) e adicionam "Clean" (Limpo) ou "DDF" (Drug and Disease Free), estigmatizando quem tem o vírus, mesmo indetectável.
- Demissão discriminatória: funcionários que são demitidos logo após a empresa descobrir o diagnóstico (através de afastamentos médicos ou vazamento de informações), sob justificativas genéricas de "corte de custos".
- Isolamento doméstico: famílias que separam talheres, toalhas e copos para o parente com HIV, baseadas em mitos de transmissão que já foram derrubados pela ciência há 40 anos.
- Quebra de sigilo: profissionais de saúde que revelam o diagnóstico do paciente para familiares ou na recepção da unidade de saúde sem o consentimento do mesmo.
Quem é afetado
Afeta todas as Pessoas Vivendo com HIV/AIDS (PVHA). Contudo, a sorofobia tem recortes profundos de classe, raça e gênero. A população negra e periférica morre mais de AIDS não pelo vírus, mas pela barreira de acesso criada pelo estigma e pela falta de acolhimento no sistema de saúde. Mulheres cisgênero heterossexuais também são afetadas severamente, pois muitas vezes são diagnosticadas tardiamente (já que médicos não as veem como "grupo de risco") e sofrem abandono dos parceiros após o diagnóstico, enquanto homens tendem a ser cuidados pelas esposas na mesma situação.
Por que é invisível
É invisível porque o HIV se tornou uma "deficiência oculta". Graças aos antirretrovirais, não há mais a "cara de AIDS" (emagrecimento extremo) do passado. Isso permite que o preconceito se esconda sob a máscara da "preferência pessoal" ou "cuidado com a saúde". A sociedade não discute o HIV abertamente nas escolas ou na mídia (exceto no carnaval), criando um silêncio pedagógico que mantém o estigma vivo.
Efeitos
O efeito mais perverso é o boicote à prevenção. Com medo da "morte civil" causada pela sorofobia, muitas pessoas deixam de fazer o teste de HIV para "não saber". Quem não sabe, não se trata e continua transmitindo o vírus. Gera também sofrimento psíquico grave (depressão, ansiedade), abandono do tratamento antirretroviral (por medo de ser visto pegando remédio no posto) e suicídio. A sorofobia mata mais socialmente do que o vírus mata biologicamente hoje em dia.
Autores brasileiros
- Herbert Daniel
- Richard Parker
- Vera Paiva
- Veriano Terto Jr.
Autores estrangeiros
- Susan Sontag
- Erving Goffman
- Jonathan Mann
- Peter Piot
